quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O Leitor


Produção internacional elegante e cheia de bons atores discute a questão da culpa alemã (e a salvação pela arte)
Por: Rodrigo Carreiro
Os alemães de qualquer idade ou geração têm um tabu. Falar sobre o passado nazista do país – ou seja, sobre o genocídio cometido durante o regime de Hitler – permanece uma experiência constrangedora, ou mesmo perturbadora, para a grande maioria da população do país, mesmo várias gerações depois da II Guerra Mundial. Este tabu só começou a ser derrubado, ainda com certa hesitação, a partir da chegada do século XXI, quando filmes como “A Queda” (2004) iniciaram um processo de humanização dos carrascos nazistas, um processo que se estendeu para vários outros filmes e obras artísticas. “O Leitor” (The Reader, Reino Unido/Alemanha, 2008) faz parte deste movimento nascido espontaneamente, e lida diretamente com o tema da culpa (consciente ou não) dos alemães por terem a mesma nacionalidade dos assassinos de milhões de europeus.
“O Leitor” consiste em um raríssimo caso de superprodução internacional concretizada sem dinheiro ou apoio formal de estúdios norte-americanos. O filme é dirigido pelo inglês Stephen Daldry. A maior parte do elenco tem a mesma nacionalidade do diretor, com o acréscimo de alguns atores alemães (a atriz sueca Lena Olin também tem uma participação importante). Boa parte do orçamento foi captado em órgãos de incentivo cultural oriundos da própria Alemanha. Foi uma das formas que o governo do país encontrou para incentivar a discussão deste tema espinhoso, muitas vezes varrido para baixo do tapete pelos membros de uma sociedade que, mesmo passadas várias décadas, ainda não conseguiu se olhar no espelho depois de permitir a ocorrência de tamanha atrocidade.
Este é o terceiro trabalho de Daldry na direção de longas-metragens. Graças ao estilo suntuoso e clássico de narrar, ele se tornou queridinho pela Academia de Artes de Hollywood, tendo obtido sua terceira indicação sucessiva ao Oscar de direção (e também de filme). O currículo respeitável e a visibilidade, mesmo trabalhando fora dos círculos habituais dos grandes estúdios, o tornam um nome convidativo para atores de prestígio. É o que ocorre aqui, com a presença de Kate Winslet e Ralph Fiennes. O elenco desempenha com correção, e o trabalho de cenografia, capturado em película pelos veteranos fotógrafos Chris Menges e Roger Deakins (este último começou o trabalho, mas deixou o filme antes da finalização), garante belas imagens. Apesar disso, o filme sofre demais com a abordagem fria, quase intelectualizada, do tema. É um trabalho bonito e bem feito, mas sem calor humano – sem emoção. Trata-se de uma
experiência emocional, distante, quase impassível, e que tem lá seu quinhão de clichês e cacoetes narrativos típicos de um drama que almeja ganhar prêmios.
A história, baseada num
romance escrito pelo jurista Bernhard Schlink, possui três tempos narrativos distintos. O hábil roteiro, de David Hare, entrelaça esses três tempos de forma suave. Toda a história, na verdade, é contada em retrospectiva pelo advogado alemão Michael Berg (Fiennes na meia idade, o extraordinário David Kross na juventude). Quando adolescente, ele teve uma experiência amorosa intensa e fugaz com uma cobradora de metrô chamada Hannah (Kate Winslet), que sumiu de sopetão alguns meses após o início do caso. Uma décadas depois, enquanto estudava Direito, Berg a reencontrou em circunstâncias pouco comuns – soube, só então, que ela tinha sido guarda da SS no campo de concentração de Auschwitz. Na ocasião, estava sendo julgada por ter permitido a morte de 300 mulheres durante um incêndio numa igreja abandonada, durante uma marcha de prisioneiros no final da guerra, em 1945. Portanto, antes do affair.
As memórias desses dois períodos vêem até o Michael adulto porque Hannah, já perto da velhice, está prestes a entrar de novo na vida dele. O período crucial da narrativa, para a evolução dramática, é o segundo. O tema principal se expressa através do tumulto emocional de Michael no decorrer do julgamento de Hannah. Ele tem informações sobre ela que, se divulgadas, podem interferir de forma determinante no resultado do julgamento. É através do comportamento dele que Stephen Daldry pretende discutir a questão da culpa alemã. De quebra, o cineasta também aborda (com pompa e circunstância) o tema da humanização através da arte – no caso, a literatura. Nisso, lembra bastante o também inglês “
Desejo e Reparação”, que tem mise-en-scéne bastante semelhante.
Nos aspectos técnicos, há espaço para todo tipo de elogio. Como legítimo filme de atores, “O Leitor” tem excelente desempenho coletivo, com destaque para o novato David Kross. Stephen Daldry capricha nas transições elegantes entre os três tempos narrativos (observe, já no final, a suave passagem do passado pelo presente que mostra a troca de atores que interpretam o personagem masculino quando ele está dentro de um trem). O diretor também acerta ao manter certo mistério na composição da personagem feminina. Ela é orgulhosa, decidida e pouco instruída, mas nada disso explica totalmente seu comportamento. Hannah permanece uma charada, um mistério que nem Michael e nem os espectadores conseguem desvendar totalmente, o que é um dado positivo. Além disso, a elegância e sobriedade do clímax, com a participação extraordinária de Lena Olin, concluem o filme de maneira pouco comum, mas muito convincente.
Por outro lado, as concessões comerciais comprometem um pouco o resultado final. Tome como exemplo a trilha sonora didática, óbvia, em que um violoncelo é “acionado” nos momentos de maior intensidade dramática, praticamente gritando para o espectador que a hora do suspense chegou. A maquiagem aplicada para o envelhecimento de Kate Winslet é absurdamente artificial. Além disso, a opção dos produtores em escalar um diretor inglês (e elenco idem) para discutir uma questão que é fundamentalmente alemã também soa estranha, já que Daldry jamais consegue mergulhar mas minúcias do tema principal. Provavelmente vem daí, desse estranhamento ao tema que vive o diretor, a frieza emocional da narrativa, algo que o fato de o filme ser totalmente falado em inglês também enfatiza, porque nos lembra a todo instante do caráter ficcional da obra. É importante ressaltar, porém, que esta decisão fundamental foi tomada pelos produtores alemães, e não pelo diretor. O produto final, apesar de bonito e bem feito, carece da intensidade emocional necessária para um filme que se pretende relevante na discussão de um tema tão complexo e polêmico.

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