
Com muitos diálogos, filme discute temas difíceis como a pedofilia na Igreja Católica e as sutis diferenças entre fatos e impressões
Por: Rodrigo Carreiro
Um dos gêneros mais traiçoeiros para os diretores de cinema é o drama fincado em personagens, e não na ação. Com freqüência, esse tipo de filme se concentra, quase que exclusivamente, em diálogos (em algumas vezes, também monólogos). Numa época em que a dieta básica das platéias internacionais consiste em intercalar momentos mais calmos com seqüências envolvendo montagem hiperacelerada e efeitos sonoros bombásticos a cada 10 minutos de projeção, a tarefa de fisgar e manter a atenção dos espectadores em filmes mais serenos costuma ser bem complicada. Por outro lado, longas-metragens com essas características costumam ser sempre bem cotados em premiações como o Oscar, o que lhes confere um tipo diferente de valorização, por parte dos grandes estúdios.
Não é difícil explicar porque o Oscar quase sempre acaba nas mãos de diretores e produtores de filmes que põem os diálogos acima de todas as outras ferramentas narrativas. Esse gênero fílmico, afinal, está mais próximo da literatura; e na cultura norte-americana (assim como no Brasil), a literatura ocupa um patamar artístico mais nobre do que o cinema. Não deveria ser assim, mas boa parte das pessoas ainda acredita, lá no fundo, que os livros consistem em um tipo de produto artístico cujo valor intrínseco está acima dos filmes. A partir desse raciocínio, produções audiovisuais com ênfase na palavra – a mesma matéria-prima da literatura – ocupam uma posição superior na escala hierárquica cinematográfica. É por isso que filmes como “Dúvida” (Doubt, EUA, 2008) costumam atrair os melhores profissionais.
Não há dúvida de que reunir, num único longa-metragem, nomes do calibre de Maryl Streep, Philip Seymour Hoffman e o fotógrafo Roger Deakins, apenas para citar alguns, é uma façanha e tanto. Além disso, o trabalho de John Patrick Shanley apresenta evidentes ambições literárias. Aborda diretamente um tema espinhoso – a pedofilia dentro da Igreja Católica, que já rendeu polêmicas intermináveis dentro dos Estados Unidos – e, no subtexto, discute com inteligência a difícil dicotomia entre aquilo que é concreto e objetivo (os fatos) e a matéria subjetiva (as impressões) com que cada pessoa lida em seu dia-a-dia. Trata-se de um filme adulto, feito para platéias mais ou menos cultas, mas que peca pelo excesso típico em filmes que carregam o selo literário do Oscar: não confia no poder das imagens (e da sugestão), preferindo conferir às palavras a tarefa de contar a história.
Obviamente, “Dúvida” é um filme de atores. Praticamente toda a produção consiste de diálogos entre dois ou mais personagens. As cenas são bem mais longas do que o normal. Tome como exemplo a seqüência de abertura, que tem duplo propósito (apresentar o tema principal e também os personagens). Ela acontece numa missa, dentro do colégio interno onde o enredo toma forma. Nela, o padre O’Malley (Hoffman) profere um sermão sobre a dúvida. Enquanto ele fala, a rígida diretora da escola (Streep) passeia por entre os bancos da igreja, deslizando silenciosamente como um fantasma, repreendendo freiras e alunos distraídos. É um longo discurso, em que se pode perceber uma característica importante da obra: os personagens parecem ser construídos sobre velhos arquétipos narrativos. Há a freira impassivelmente rígida (a “vilã”), o padre caloroso e amigo (o “herói”).
No meio dos dois, o cineasta John Patrick Shanley posiciona uma noviça (Amy Adams), em que repousa o ponto de vista adotado pela narrativa. Ela teme a veterana, embora também admire sua correção; e sorve com prazer cada palavra dita pelo padre, apesar de estranhar alguns hábitos, digamos, mais amistosos que o normal para gente de batina. E é justamente após presenciar uma cena cujo significado ela não compreende que a jovem freira começa a duvidar. Ao fazê-lo, ela entra em conflito. Deve dividir esta dúvida com a superiora? Que conseqüências tal atitude poderia disparar para o padre e, principalmente, para a escola? Aos poucos, enquanto responde essas dúvidas, o diretor derruba clichês sobre os arquétipos e humaniza-os.
Com a ajuda valiosa do veterano Roger Deakins, Shanley organiza a mise-en-scéne de cada cena com habilidade. Os figurinos, o desenho de som, as cores, a iluminação e a movimentação dos atores dentro do quadro reforçam o que está sendo dito nos diálogos, mas não escondem o fato de que são as palavras que conduzem a narrativa. Tome como exemplo a trecho em que o diretor intercala os jantares dos padres e das freiras. O ambiente entre os homens é barulhento; eles bebem vinho e cerveja, fumam, contam piadas com palavrões, comem em uma mesa desarrumada, e a câmera filma tudo a partir de ângulos oblíquos, que acentuam deliberadamente esta desorganização calorosa. Os tons predominantes são marrons e vermelhos – cores quentes convidativas. As mulheres comem em silêncio sepulcral, com disciplina quase militar. Não conversam. O branco gélido domina o ambiente (elas bebem leite, a toalha da mesa é de linho branco e não tem manchas). A composição visual da tomada busca um ângulo geométrico impecável. A sensação de ordem é avassaladora.
O esforço de Shanley para criar uma mise-en-scéne elegante e elaborada, que carregue o filme para uma dimensão mais rica do que a fornecida apenas pelas palavras, é perceptível. Talvez perceptível em excesso, como se pode perceber na longa cena-chave do filme, que ocorre bem na metade da projeção, e que consiste num tenso debate entre três personagens. O que não existe, porém, é a sutileza que daria ao filme o toque imperfeito e humano, imprescindível para transformá-lo em algo mais do que uma narrativa gélida e bem articulada sobre os temas expressos pelo roteiro. Em seu favor, os personagens de “Dúvida” mostram-se mais complexos e menos maniqueístas do que sugerido pela cena inicial (e isso inclui o jovem negro que é pivô da confusão). Por outro lado, a absurda e ridícula seqüência final, que praticamente grita a “mensagem edificante” para o espectador, implode o esforço do diretor para dotar o filme desse caráter mais humano.
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