terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O Assassinato De Jesse James


Andrew Dominik coreografa, com rara beleza e espírito melancólico, uma dança da morte entre uma lenda do faroeste e seu assassino
Por: Rodrigo Carreiro

Homem não chora. O velho ditado, que anda meio em desuso, encaixa perfeitamente no faroeste, o mais macho dos gêneros cinematográficos. Nos tempos áureos do western, em filmes de gênios como John Ford e Howard Hawks, os heróis podiam ser taciturnos e amargurados, mas mantinham a expressão impassível mesmo na hora da morte. Só que os tempos mudaram. No contemplativo e genial “O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford” (The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford, EUA, 2007), o diretor neozelandês Andrew Dominik desconstrói um dos grandes mitos do Velho Oeste, enfatizando o sofrimento mudo do lendário pistoleiro Jesse James e, numa cena crucial, mostrando-o às lágrimas. O filme coreografa, com rara beleza e espírito melancólico, uma verdadeira dança da morte entre James e o homem que o assassinou.
Em seu segundo longa-metragem – o primeiro, “Chopper” (2000), transportou o ator australiano Eric Bana para o primeiro time de Hollywood –, Dominik desenha uma nova roupagem para dois personagens clássicos da mitologia do faroeste. Impondo um ritmo intencionalmente lento, com longos silêncios e muitas imagens da natureza filtradas através de uma fotografia fortemente estilizada, o cineasta investe na dinâmica complexa entre dois personagens que alimentavam sentimentos ambivalentes de amor e ódio entre si. Acaba por construir um duplo e magnífico estudo de personagem. Apesar de adotar uma curiosa narração em off que pontua a narrativa com descrições objetivas e detalhadas dos acontecimentos, Dominik recusa a tentação de explicar a natureza da tensa relação estabelecida entre James (Brad Pitt) e Ford (Casey Affleck), deixando para a platéia a tarefa de compreendê-la e, acima de tudo, senti-la.
“O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford” não é um filme comum, bebendo de fontes aparentemente díspares e contraditórias, como “Barry Lyndon” (rigor com os detalhes, iluminação dos interiores), “
Dias de Paraíso” (imagens da natureza, caráter contemplativo), “Jogos e Trapaças” (retrato duro e melancólico do Velho Oeste), “Pat Garrett e Billy The Kid” (a morte marcando presença na vida dos mitos) e os faroestes psicológicos de Monte Hellman. A rigor, o filme de Andrew Dominik sequer deveria ser categorizado como um faroeste, já que dispensa as convenções e clichês do gênero e despreza a ação física, para tentar capturar o movimento interior de seus dois protagonistas. Durante as quase três horas de projeção, há apenas um assalto e um tiroteio. Este último, em particular, impressiona pela forma realista como é filmado, com os dois pistoleiros esvaziando armas a dois metros de distância, um de frente para o outro, e errando quase todos os tiros, tamanho é o nervosismo que ambos sentem diante da situação.
Uma das múltiplas leituras possíveis, e talvez a mais incisiva, comenta com amargura a inevitabilidade contemporânea da cultura das celebridades, que o próprio cinema ajudou a estabelecer. Neste sentido, Dominik comete uma série de acertos, a começar pela escalação de Brad Pitt para o papel principal – quem melhor do que Pitt, galã que monopolizou os sonhos eróticos de toda uma geração, para interpretar um homem obrigado pela fama a renunciar à vida pessoal, e que se tornou prisioneiro de uma imagem pública que pouco tinha de verdadeira? O paralelo entre a vida do astro (a dificuldade dele para manter a privacidade) e as situações vividas por Jesse James enriquece ainda mais o já brilhante retrato do pistoleiro, pintado como um homem progressivamente mais e mais obsessivo a respeito da própria segurança, à medida que sua fama cresce de maneira despropositada (“Na Europa só se conhece dois americanos: Mark Twain e Jesse James”).
No longa-metragem, James passa por uma complexa jornada interna de aceitação da condição de lenda vida, que também significa uma morte violenta e inevitável. Após 12 anos de assaltos espetaculares, ele pressente o cerco se fechar aos poucos. Muda periodicamente de residência, sempre à noite, sem aviso prévio. Faz visitas inesperadas a colegas de ofício, para amedrontá-los. Quando cavalga em grupo, procura sempre ficar no final da fila, para evitar ataques pelas costas. Nada disso adianta. A tensão se avoluma, a insônia se torna crônica. Exausto, doente, Jesse compreende aos poucos que não tem como evitar um encontro desagradável com o destino. A celebridade, aliada à rebeldia, tem um preço, e ele terá que pagá-lo.
Dentro deste contexto, a presença do jovem Robert Ford no grupo de bandidos iniciantes que cerca Jesse faz todo sentido. Ford é o caçula de cinco irmãos, tem somente 19 anos e passou a infância lendo os relatos exagerados das proezas do pistoleiro, em novelas de bolso. Ele é o fã devoto que se acredita destinado à grandeza, à sucessão do ídolo. As seguidas demonstrações de desprezo por parte de todo mundo, inclusive da própria família, lhe transformam num homem profundamente ferido. A primeira aparição de Bob Ford em “O Assassinato de Jesse James” é um perfeito signo visual da falta de sintonia entre ele e o mundo. Ford aproxima-se do círculo de ladrões, que bate-papo em uma clareira num bosque, vestindo uma cartola caindo aos pedaços. Assim que se senta entre os homens, um deles anuncia que é hora de almoçar. Todos se levantam, deixando-o sozinho. Ninguém sequer chega a perceber a presença dele.
Extraordinário no papel, Casey Affleck dá conta do tumulto interior do personagem sem precisar abrir a boca, apenas com a expressão corporal. Ele é um anjo caído, uma criança humilhada que busca desesperadamente uma maneira de saciar um apetite por glória que nasceu justamente de seu interesse pelas façanhas de Jesse James. Seu sorriso amarelado demonstra simultaneamente deslumbramento e inocência, dor e ambição. A câmera freqüentemente o flagra espiando por trás de janelas e superfícies de vidro que mostram seu rosto retorcido – uma inteligente sugestão visual de que Bob Ford é dono de uma visão de mundo distorcida. Ele também passa por uma jornada completa, indo do deslumbramento ao ódio, ao perceber que o ídolo não lhe leva (e nem levará) a sério. Qualquer paralelo entre Ford e Mark Chapman, o fã que matou John Lennon, não é
mera coincidência.
A fotografia de Roger Deakins traduz visualmente com exatidão o choque de egos feridos, entre esses dois homens tão diferentes e ao mesmo tempo tão parecidos. Deakins usa e abusa de lentes grande-angulares para capturar imensas e belíssimas paisagens naturais, mostrando Jesse James quase sempre à distância. Ao ressaltar a pequenez do pistoleiro diante da beleza imponente da natureza, Deakins contribui para rebaixar a lenda à condição de homem, ao mesmo tempo em que acentua a sensação de morte à espreita através dos tons crepusculares. Nas cenas interiores, ele utiliza fortes contrastes claro/escuro e iluminação à luz de velas, cheia de sombras, para acentuar a atmosfera naturalista e o clima de mistério. Uma das mais extraordinárias tomadas, que abre uma das grandes seqüências do filme (o assalto ao trem), mostra James como uma silhueta negra emergindo em meio a uma nuvem de fumaça, como alguém que acaba de pular de uma dimensão para outra da realidade – um fantasma saindo do inferno, talvez.
Dosando todas essas virtudes como um veterano, Andrew Dominik acrescenta à mistura uma dose generosa de obsessão pelas minúcias, o que contribui para o tom realista da produção. Observe, por exemplo, os numerosos detalhes do vagão-dormitório popular do trem assaltado pela gangue, que aparece em uma rápida cena durante o já citado assalto. São poucos segundos, mas percebe-se o esforço em prol da fidelidade histórica: há gente saindo pelo ladrão, distribuída em duas camadas de passageiros, uma sentada e outra deitada sobre beliches estreitos, nas laterais do trem. Um faroeste comum se contentaria em mostrar um vagão de primeira classe, do tipo que você já viu em algumas dezenas de produções da época.
Para ajudar os atores a “entrar” nos personagens, Dominik também não mediu esforços. Ele não se contentou em utilizar réplicas do revólver Schofield 3, modelo de arma utilizado pelo Jesse James real. Mandou a produção conseguir revólveres originais, com colecionadores de objetos históricos. Depois, conseguiu que a fábrica Smith & Wesson restaurasse uma das armas, e mandou gravar nela o número de série da pistola que Jesse empunhava no dia em que foi morto, antes de dá-la a Brad Pitt. Até mesmo a cópia da aliança de casamento do bandoleiro, usada pelo ator, tinha o nome completo do bandido gravado internamente, com o mesmo tipo de letra utilizado no século XIX. São detalhes que não aparecem para o espectador, mas ajudam o ator a mergulhar no personagem, assumindo uma espécie de compromisso moral com ele.
Todas essas minúcias teriam sido em vão se o roteiro, escrito pelo próprio diretor, não conseguisse estabelecer a dinâmica correta entre os dois protagonistas. Neste ponto reside o maior acerto da produção. Dominik não apenas providencia diálogos brilhantes (destaque para a cena do jantar de Jesse com a família Ford, onde a tensão é tão sólida que poderia ser cortada com uma faca), mas ainda preenche a narrativa com um subtexto rico, criando uma alegoria bíblica com a traição de Judas a Cristo. O filme sugere que Jesse James sabia (ou pelo menos pressentia) a traição, mas não tinha mais forças e nem interesse para impedi-la. Àquela altura, o pistoleiro já compreendia que escapar de um atentado não significaria muito. Haveria outros Bob Ford. O status de lenda viva só lhe daria sossego após a morte. A montagem da seqüência do assassinato-título apenas reforça este conceito, tornando explícito o paralelo com a relação entre Jesus Cristo e o apóstolo traidor. O maravilhoso tema musical de Nick Cave, um réquiem pungente, percorre todo o filme em arranjos que se tornam mais e mais fúnebres. É a cereja no topo desta obra-prima.
Infelizmente, “O Assassinato de Jesse James” é o tipo de espetáculo que bate de frente com as expectativas das platéias contemporâneas. Lida com os signos visuais de um gênero morto, é longo demais para os padrões atuais (2h40), prefere a ação interior e opta por um ritmo lento e contemplativo, que exige paciência para absorver a riqueza e a complexidade dos temas abordados. Sabendo disso, a Warner atrasou o lançamento por quase dois anos, obrigando o diretor e montar e remontar a obra seguidas vezes. De nada adiantou que o filme concedesse o prêmio de melhor ator a Brad Pitt no Festival de Veneza. Com lançamento restrito a salas alternativas nos EUA, o longa-metragem fechou a temporada de exibição com o faturamento minúsculo de US$ 3 milhões, apenas 10% do orçamento total. Fica o conforto de que nem sempre as platéias sabem reconhecer obras-primas de imediato.

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