quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Lavoura Arcaica


Belo mas difícil, drama amargo de Luiz Fernando Carvalho exige paciência e espírito desarmado do espectador
Por: Rodrigo Carreiro

Alguns filmes são únicos, verdadeiros corpos estranhos que não se encaixam em gêneros, regras estéticas ou conceitos narrativos. São obras tão radicais, tão pessoais, tão diferentes de tudo, que exigem do espectador uma revisão de conceitos. “Lavoura Arcaica” (Brasil, 2001), estréia cinematográfica de Luiz Fernando Carvalho, é assim. Atemporal, lento, virtuoso, plástico, amargo, violento, literário, explosivo, lindo, hermético, difícil. Todos esses adjetivos se aplicam a ele, e ainda assim não ajudam a defini-lo – nem mesmo são capazes de dar ao leitor uma idéia razoável do que esperar dele. Trata-se de uma experiência artística completa, uma mistura delirante de poesia, teatro, pintura, fotografia e música que, juntos, desembocam em cinema da melhor qualidade.
Antes de continuar, porém, um parêntese para uma reflexão pessoal (não é algo que eu faria num texto sobre um filme comum, algo que “Lavoura Arcaica” está longe de ser). Penso que
crítica de cinema não é arte, nem deve ser subjetivo em excesso. Pelo contrário. Por experiência própria, sei que a maior parte dos leitores desse tipo de texto, no Brasil, buscam informações objetivas que os ajudem a categorizar uma produção, de modo que sintam atraídos (ou repelidos) a assisti-la. Por isso, nos meus escritos, sempre tento expor o contexto em que cada filme foi produzido, cotejando-o com outras obras do mesmo diretor, e muitas vezes dando exemplos de títulos com que apresenta algum tipo de semelhança. É uma maneira simples, e relativamente objetiva, de ajudar o leitor na decisão sobre ver ou não o filme, independente da minha opinião pessoal sobre ele.
Ocorre que este tipo de exercício crítico é impossível de realizar com “Lavoura Arcaica”. O caráter único do “filho” de Luiz Fernando Carvalho fica evidente já a partir do próprio contexto de produção. Como se sabe, o cineasta é egresso da TV Globo, onde dirigiu novelas e minisséries de grande sucesso. Para a primeira incursão no terreno do longa-metragem, contudo, Carvalho optou pelo individualismo extremo, e recusou qualquer tipo de concessão comercial, inclusive abortando a ajuda da empresa em que trabalha. Debruçou-se sobre um dos textos mais áridos, amargos e poéticos da literatura nacional – uma novela de Raduan Nassar, escritor descendente de libaneses, sobre a difícil convivência entre um pai autoritário e um filho rebelde – com uma reverência difícil de encontrar. E deu a ele um tratamento absolutamente sem par no cinema nacional (quiçá internacional).
Luiz Fernando Carvalho optou por uma política de imersão total na obra. Levou o elenco e a equipe técnica para viver numa comunidade rural, em uma fazenda no interior de Minas Gerais, durante três meses. Todos aprenderam a plantar feijão, costurar as próprias roupas, ordenhar vacas. Filmou sem roteiro, levando à tela de maneira literal o texto de Nassar, inclusive diálogos e passagens que descrevem a vida interior dos personagens. Comandou a produção com mão de ferro, empenhado que estava em reproduzir na telona cada um dos aspectos sensoriais da novela. A participação pessoal foi tão intensa que Carvalho não apenas dirigiu – ele assina também o roteiro, faz a narração das passagens recitadas por André, o protagonista, e foi responsável pela montagem meticulosa, que levou três anos para concluir.
O resultado é difícil, sim, mas também belo – uma experiência sensorial completa, vigorosa, belíssima. Se analisado de forma compartimentada, “Lavoura Arcaica” é um triunfo em cada um dos departamentos: fotografia magistral em tons de terra, direção de arte rústica, figurinos humildes e despojados, trilha sonora lírica baseada em temas árabes, interpretações antológicas de todo o elenco. É tudo perfeito, um banho iluminado de poesia. Quando protagonista André, menino, enfia o pé na terra molhada e deita numa cama de folhas secas, é quase possível sentir a textura da areia e o cheiro da grama.
Apreciar o espetáculo em toda a sua intensidade, porém, exige um esforço extra do espectador. É preciso se despir das expectativas e se preparar para algo novo, algo único, porque “Lavoura Arcaica” expande o que nós conhecemos por Cinema. É lento? Sem dúvida. Hermético? Com certeza. Mas como o próprio filme defende, a paciência é uma virtude, e uma virtude que pode recompensar os leitores mais esforçados. Estes serão premiados com uma extensa galeria de cenas antológicas – a abertura forte e polêmica, a bela cena de dança, o namoro proibido na capela, a parábola instigante em preto-e-branco, o forte confronto entre pai e filho, a fantástica seqüência final – cujo único problema é, talvez, a duração em excesso, causada por enorme quantidade de momentos contemplativos.
A sinopse é descrita como uma inversão do conto bíblico do filho pródigo, o que soa como simplificação cruel da história sombria, cheia de raiva e dor. André (Selton Mello) é um jovem descendente de libaneses que abandonou a fazenda dos pais (Raul Cortez e Juliana Carneiro da Cunha), desiludido com o autoritarismo do primeiro. Resgatado de uma pensão vagabunda pelo irmão mais velho (Leonardo Medeiros), ele se prepara para um amargo retorno ao lar através de recordações livres sobre a infância e a juventude no local. André vive uma ciranda pessoal que reúne no mesmo saco falta e excesso de amor, apego à família, desejo de liberdade e paixão incandescente. O filme lida com temas difíceis, como incesto e epilepsia, com um misto paradoxal de elegância e virulência formal que não se encontra com facilidade. Um filme para poucos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário