
Estética que privilegia luz e sombras transforma filme de Alejandro Amenábar em suspense aterrorizante e muito elegante
Por: Rodrigo Carreiro
O verdadeiro protagonista de “Os Outros” (The Others, EUA/Espanha, 2001) não é um ator. Não é nem mesmo um objeto tangível, mas um elemento da natureza. O personagem principal do terceiro filme do chileno Alejandro Amenábar é a luz, ou a falta dela. Nesse ponto de vista, o trabalho representa uma linda homenagem à magia da Sétima Arte – afinal, o que é o cinema senão luz? Deixando de lado o raciocínio, porém, “Os Outros” vai bem além de celebrar a mídia cinematográfica. O filme faz parte de uma rara estirpe, capaz de arrepiar a espinha do espectador.
O longa recupera um subgênero cinematográfico que andava sumido: os filmes de casas mal-assombradas. Embora personifiquem um filão que Hollywood explora desde a década de 1940, essas obras sempre estiveram entre as prediletas dos fãs de suspense. Só que, ultimamente, clássicos como “O Iluminado” e “A Volta do Parafuso” estavam sendo produzidos na base dos efeitos especiais. Numa longa estrada de banalização do medo, Hollywood terminou por deixar o gênero semi-enterrado. Isso tem lá suas vantagens; os clichês do gênero, por exemplo, funcionam muito melhor quando são desconhecidos pelas novas gerações.
O enredo da obra de Amenábar se passa em 1945. Grace (Kidman) é uma viúva jovem, rígida e religiosa, cujo marido partiu para a guerra e desapareceu 18 meses antes. Ela vive trancada numa mansão vitoriana nas ilhas de Jersey, uma terra sombria, tomada de neblina. Trancada, aliás, é o termo exato: os dois filhos pequenos de Grace, Anne (Alakina Mann) e Nicholas (James Bentley), sofrem de uma doença rara que os impede de ser expostos a uma luz mais forte do que a emitida por velas e lampiões. Por isso, Grace estabelece uma regra rígida: ninguém pode abrir a porta de um cômodo da casa sem fechar a anterior, e assim por diante.
Baseado nessa premissa, Alejandro Amenábar estabelece uma relação ambígua do espectador com os personagens – é na escuridão que as crianças se sentem confortáveis! Não a tôa, a viúva Grace, exasperada com a solidão, murmura, a certo momento: “Nada muda neste lugar, a não ser a luz. Mas isso muda tudo!”. A situação angustiante é explorada magnificamente pela fotografia elegante do espanhol Javier Aguirresarobe. Pelo menos três quartos da obra foram filmados realmente à luz de velas, usando a técnica desenvolvida por Stanley Kubrick para “Barry Lyndon” na década de 1970. A sensação de claustrofobia ajuda a aumentar a sensação de mistério que enterra o espectador no fundo da cadeira, esperando para resolver os enigmas.
Esses mistérios começam a pipocar logo no início, quando um trio esquisito bate à porta de Grace à procura de trabalho. Dá para perceber na hora que a governanta (Fionnura Flanagan), o jardineiro (Eric Sykes) e a criada literalmente muda (Elaine Cassidy) estão encondendo algo. Mas o quê seria esse algo? E será que não acontece a mesma coisa com quase todos os outros personagens – incluindo a jovem viúva e sua macabra filhinha, que entra na idade de questionar tudo, enquanto vê fantasmas pelo casarão? Qual a ligação entre os segredos guardados pelos personagens é exatamente o que vamos descobrir, às custas de alguns sustos clássicos, como o cinema raramente é capaz de dar.
Esse enredo, somado à trilha sonora brilhante, composta pelo próprio Amenábar, faz do filme um pequeno clássico do terror psicológico. Vale apontar também as homenagens veladas que o chileno faz ao seu diretor predileto, Alfred Hitchcock: desde a trilha claramente inspirada nos melhores momentos do maestro Bernard Hermann, colaborador do mestre do suspense, ao penteado de Nicole Kidman, que remete ao usado por Grace Kelly (mesmo nome da viúva, aliás) em “Janela Indiscreta”, muitos elementos caros a Hitchcock se espalham pelo trabalho de Amenábar.
O chileno se mostra capaz de arrancar terror até mesmo da Bíblia, ao mostrar Grace obrigando os filhos a decorar trechos violentos do Velho Testamento. Mas o elemento mais sombrio de todos está no álbum de fotos de mortos que Grace encontra, a certo momento do filme: trata-se de fotografias reais, emprestadas por um museu e tiradas no século XIX, quando um costume macabro fazia as pessoas fotografarem seus familiares mortos como se estivessem vivos. Um hábito parecido com esse existe nas cidades da Zona da Mata nordestina, conforme pode ser visto no curta-metragem pernambucano “O Retrato”, de Adelina Pontual.
Amenábar recusa sustos fáceis, abole totalmente o uso de efeitos especiais e mantém o ritmo na medida certa, desviando a atenção do espectador de um enigma para outro e deixando intocado o maior – e mais imperceptível – mistério de todos. Além disso, ainda manipula os clichês do gênero (neblina, ruídos esquisitos, piano que toca sozinho) com habilidade. Ele pode se orgulhar de ter feito um filme arrepiante sem derramar uma única gota de sangue. Grande programa para quem não tem medo de sentir medo.
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