
Retrato dantesco de um pequeno município da Zona da Mata de Pernambuco, filmado com gosto pela polêmica e rigor formal
Por: Rodrigo Carreiro
Assistir a um filme de Cláudio Assis é dar uma espiada dentro da alma torturada do mais pernambucano de todos os cineastas do chamado Cinema da Retomada (pós-1994). Segundo longa-metragem da carreira do diretor, “Baixio das Bestas” (Brasil, 2007) dá um passo à frente na já ousada carga pesada de imagens de sexo e violência presentes em “Amarelo Manga” (2003), e oferece um produto cinematográfico ainda mais explosivo e coeso. É um filme extremamente agressivo, que tem gosto pela polêmica e se caracteriza por um paradoxo rico e interessante: o contraponto entre a temática subversiva (diálogos explosivos e viscerais, imagens explícitas de perversões sexuais) e composições visuais clássicas, de grande rigor formal.
Premiado nos importantes festivais de Brasília e Roterdã (Holanda), em 2007, “Baixio das Bestas” confirma que o interesse do cineasta, nascido em Caruaru, é se mover nos intestinos da sociedade, expondo suas partes podres através de personagens com desvios de comportamento rumo a extremos de violência e sexualidade. Utilizando uma série desnorteante de imagens fortes, apresentadas com desembaraço e agressividade, a narrativa costura habilmente as histórias de uma dúzia de personagens que sobrevivem como podem ao imobilismo sócio-econômico de uma pequena cidade da Zona da Mata pernambucana, dominada pela monocultura da cana-de-açúcar. Reunindo vários pequenos contos que usam como fio condutor o mesmo espaço geográfico, o filme compõe um mosaico da vida na região, como um Robert Altman embriagado. “Baixio das Bestas” arde no estômago como um copo de cachaça.
Os personagens são divididos em três núcleos. Há as prostitutas (Dira Paes, Marcélia Cartaxo, Conceição Camarotti), que passam os dias pintando as unhas e esperando a noite chegar. Há os burgueses de roça, rapazes ricos e desocupados, que dirigem picapes envenenadas, enchem a cara, fumam maconha, assistem a filmes pornográficos num cinema abandonado e têm uma quedinha especial por estupros. E há os velhos da cidade, que se reúnem todos os dias num boteco para jogar sinuca, dominó ou baralho, enquanto tagarelam sobre a falta de perspectiva de quem mora naquele lugar onde nada acontece. Todos parecem presos em rotinas circulares e sufocantes. Um cenário propício para que a cultura arcaica, machista e patriarcal do lugar faça aflorar perversões sexuais que o cinema comercial não tem coragem de abordar. Claro que um filme de Cláudio Assis não tem nada de normal.
Quando exibido em Brasília, o título foi recebido com espanto, provocando reações extremas. Ganhou vários admiradores, mas muita gente se sentiu incomodada com o espetáculo dantesco de degradação a que alguns dos personagens são submetidos. Na cerimônia de premiação, quando foi agraciada com seis troféus, a produção recebeu aplausos e vaias em doses iguais. A reação é compreensível, porque “Baixio das Bestas” ocupa um lugar na cinematografia brasileira contemporânea que não é freqüentado por nenhum outro cineasta. Ninguém faz filmes como Cláudio Assis, goste-se dele ou não. É um cineasta de extremos, que se recusa a filmar apenas para demonstrar habilidade na manipulação dos elementos fílmicos, ou para pagar as contas. Assis filma porque sente uma necessidade irreprimível de se expressar, ainda que de forma caótica e violenta, quase rancorosa.
Aí está um cineasta que merece o rótulo de autor. Via de regra, o trabalho de Assis tem como máximo objetivo aplicar choques de realidade na platéia. O cineasta acredita que só assim é possível arrancar o público da letargia em que o cinema de puro entretenimento o mergulhou. A filosofia de vida dele é viver intensamente, deixando todas as emoções aflorarem, inclusive as mais negativas; aproveitar passar pela vida com tanta intensidade quanto possível; arder como fogo. O diretor vive assim, seus filmes são assim, e seus personagens também refletem isso. São gente do povo, gente que usa dentadura e tem mais defeitos do que virtudes. Gente que com freqüência interrompe diálogos expositivos para vociferar frases soltas, como uma filosofia repleta de palavrões, que carregam a assinatura do diretor. Quem conhece Cláudio Assis vai reconhecer nas imagens e palavras de “Baixio das Bestas” a alma atormentada e agressiva do cineasta – e isto é um elogio. Afinal, as melhores obras não são aquelas que dizem algo a respeito do artista que as cunhou?
“Baixio das Bestas” é um filme incômodo. Os espectadores que já reclamavam do forte teor de sexo (o incrível plano-detalhe dos pêlos púbicos de Leona Cavalli) e violência (a vaca sendo morta a facadas) de “Amarelo Manga” talvez precisem manter distância deste título aqui. Estupros, pedofilia, voyeurismo, prostituição e todos os tipos de perversão sexual ganham na tela um retrato visceral, cheio de energia, realçado pela maravilhosa fotografia (assinada por Walter Carvalho) em tons esverdeados e de terra. A luz do filme, primorosa, não apenas marca uma distância segura das tonalidades esmaecidas e urbanas de “Amarelo Manga”, mas também reflete com propriedade a cor e a textura de uma cidade da zona da mata, com suas estradas de barro e canaviais, botecos sem iluminação e maracatus.
Na concepção visual de “Baixio das Bestas” também aparece o mais rico paradoxo que envolve os talentos de Assis. Por trás do amor pelo grotesco deste diretor subversivo por imagens explícitas de sangue e sexo, está um cineasta disciplinado e de grande rigor formal. A estética de “Baixio das Bestas” não é, como se pode imaginar, despojada e irresponsável; pelo contrário, é meticulosa e sofisticada. Composições visuais e movimentos de câmera elegantes exprimem um autor de olho apurado. Há nítida preferência por planos fixos, que muitas vezes eliminam intencionalmente uma parte da ação (que ocorre portanto fora do quadro). Assis é também adepto de posições de câmera radicais, abusando de plongées em que a câmera olha de cima para baixo num ângulo de 180 graus (“a perspectiva de Deus”, diria Pauline Kael).
Outra estratégia visual muito comum do diretor consiste em revelar aos poucos a íntegra de cada ação, com travellings laterais suaves. Esses movimentos freqüentemente revelam elementos novos, que põem a composição inicial do quadro em nova perspectiva e exige um ajuste na atenção do espectador – é preciso estar sempre atento para novidades, mesmo nas tomadas mais longas, em que nada parece acontecer. Além disso, o crítico Luiz Carlos Merten percebeu um detalhe extra que enriquece ainda mais a experiência da platéia: “Há sempre uma ação no primeiro plano, mas também há um fundo – gente que passa, ônibus, bicicletas, caminhões. É como se outras histórias estivessem correndo paralelamente”, escreve o crítico paulista. Dá mais trabalho filmar assim, mas o resultado final é bem mais rico e complexo do que o habitual.
Ótimo exemplo deste tipo de composição visual sofisticada aparece logo no primeiro plano do filme, logo após as imagens de usinas no prólogo. Vemos inicialmente o exterior de uma velha igreja, à noite. Pela direita, entram no quadro um velho (Fernando Teixeira) e sua neta de 13 anos (Mariah Teixeira). O homem arranca as roupas da criança, deixando-a nua, parada e em pé. Aí a câmera se afasta, num lento travelling para trás, desnudando finalmente o cenário completo: dezenas de espectadores que pagaram para conferir o bizarro show de streap tease pedófilo. Nesta tomada sem cortes, breve e silenciosa, estão reunidos todos os elementos importantes do cinema de Cláudio Assis: o sexo, a polêmica, a controvérsia, a denúncia social e o rigor formal.
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