terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Venus


Drama britânico aborda tema desagradável da proximidade da morte com realismo e dignidade
Por: Rodrigo Carreiro

Desde o início da era dos blockbusters, mais ou menos na metade da década de 1970, o público-alvo primordial da quase totalidade de filmes comerciais passou a ser formado por adolescentes. Como jovem só se identifica com personagem jovem, produções com protagonistas acima dos 40 anos de idade tornaram-se cada vez mais raras. O drama britânico “Vênus” (Venus, Reino Unido, 2006) não apenas quebra com este paradigma, mas vai além: abre espaço para um ator de 74 anos no papel principal e ainda tem a coragem de derrubar outro tabu, ao transformar a proximidade da morte – algo sempre desagradável e que a maioria das pessoas procura evitar – em tema crucial do longa-metragem.
Terceira parceria entre o bom diretor
Roger Michell (“Um Lugar Chamado Nothing Hill”) e o ótimo roteirista Hanif Kureishi (“Minha Adorável lavanderia”), “Vênus” aborda este assunto delicado ao criar um retrato realista, e um tanto cínico, da relação entre um homem velho e uma garota de 20 e poucos anos. A câmera de Michell filma o encontro dos dois com surpreendente franqueza. Abordando a história sem comiseração, e abrindo espaço para nuances que tornam a relação de forças entre ambos algo complexo e fascinante, o filme propõe uma reflexão franca, sem um pingo de pieguice, sobre a natureza potencialmente egoísta do ser humano.
Em uma opção anticomercial e certamente elogiável, Michell constrói o principal personagem masculino como um sujeito detestável. Maurice (Peter O’Toole) é um ator veterano que ganha alguns trocados fazendo papel de moribundo em seriados de TV. Ele e o velho amigo Ian (Leslie Phillips) estão naquela fase da vida em que apenas esperam a morte chegar, e o fazem com bom humor e cinismo. Passam os dias trocando remédios (“pílulas azuis são as melhores”) e apostando quem será o próximo conhecido a ter um anúncio de velório publicado no jornal local. Ambos chegaram solitários à velhice. Viveram vidas hedonistas e desregradas quando jovens, e agora pagam o preço por isso.
“Vênus” realmente começa quando entra em cena Jessie (Jodie Whittaker), sobrinha-neta de Ian. Residente no interior, a garota é enviada para Londres, onde os velhos moram, para cuidar de Ian, cada vez mais debilitado. Como qualquer menina de sua idade, Jessie não possui outros interesses além de rapazes, bebida e moda. Os dois velhos não passam, para ela, de estátuas de cera, sujeitos indesejados que ela precisa suportar pelo direito de viver na metrópole e, quem sabe, realizar o sonho de virar modelo. Jessie não é particularmente bonita, mas sua juventude encanta Maurice. O ator, sexualmente impotente, continua sendo um homem safado. A diferença é que agora está preso no corpo alquebrado de um idoso.
Se seguisse a fórmula tradicional dos roteiros de Hollywood, Kureishi teria escrito um drama edificante cuja “moral da história” seria a teoria estapafúrdia de que a juventude está na mente, não no corpo. Ao invés disso, o roteiro se concentra em enfocar um tipo de relação muito mais raro e fascinante. Experiente, Maurice reconhece na garota um desejo latente de atenção e dá a ela o que deseja, criando um jogo de trocas simbólicas. Ele lhe paga almoços caras pela oportunidade de dizer gracejos picantes, compra um belo vestido pelo direito de dar cheiros no cangote. Na verdade, é um jogo menos material e mais simbólico. Ela tem algo que ele deseja (a juventude), e vice-versa (a atenção). Como toda relação baseada em trocas simbólicas, porém, esta aqui também é perigosa. Porque as coisas nunca saem da maneira que a gente prevê.
Embora a direção de Roger Michell seja apenas correta, se limitando a narrar a história de maneira didática e sem brilho, “Vênus” se mostra um filme superior, e não apenas por mostrar com franqueza o caráter parasita da relação entre velho e menina. O retrato que traça de Maurice – homem de alma refinada, que aceita a solidão da velhice como castigo merecido pelos erros do passado – é devastador. O maior de todos os acertos operados pelo roteiro de “Vênus” está na maneira como Maurice, um canalha que se transformou num velho safado, é reabilitado como ser humano. Isso não acontece de forma moralista, pois Maurice nunca se arrepende de ser um grande filho da puta. A coisa é bem mais sutil do que isso.
É a paixão, fruto inesperado de uma relação cheia de vícios, que o torna humano de novo – e não um humano de índole particularmente boa. Emocionalmente vulnerável, o velho derruba a couraça cínica que pacientemente ergueu em torno de si, e é obrigado a desnudar a alma. Talvez o melhor momento do longa-metragem seja o encontro entre Maurice e a ex-esposa (Vanessa Redgrave), ocorrido depois que ele percebe que caiu numa armadilha amorosa patética para alguém como ele, a beira da morte. E se o final do filme é bastante previsível – Kureishi e Michell não conseguem evitar esta cilada – a maneira realista como a dupla de criadores faz Maurice lidar com o problema, sem qualquer traço de ilusão romântica, minimiza o problema.
Curiosamente, “Vênus” foi lançado no mesmo ano de outro denso drama britânico sobre os amores de uma pessoa de meia-idade: “Notas de um Escândalo”. São filmes-irmãos até mesmo na excelência das interpretações. Se no longa de
Richard Eyre a performance da dama Judi Dench era avassaladora, o grande Peter O’Toole não fica atrás e apresenta desempenho arrebatador. O artista (eternamente lembrado como intérprete de do personagem-título em “Lawrence da Arábia”) compõe um Maurice manipulador e profundamente culto. Somente grandes atores são capazes de desenvolver maneirismos sutis para ilustrar com perfeição os aspectos mais desagradáveis de um personagem – observe como O’Toole passa levemente a língua pelos dentes, num sorriso matreiro, quando apresenta a Jessie alguma proposta não muito decente. E isso sem falar das lindas seqüências em que recita Shakespeare, autor especialmente adequado neste filme pela obsessão que seus textos apresentam com a decadência do corpo humano.

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