terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Matrix


O primeiro ‘Matrix’ pode ser considerado um dos futuros clássicos do cinema em todos os tempos?
Por: Rodrigo Carreiro

Alguns filmes dispensam críticas. Parte deles porque são insípidos, não mereceriam sequer ser chamados assim. Outros porque já foram tão dissecados que não há mais nada de novo que possa ser extraído deles. Esse parece ser o caso de “Matrix” (The Matrix, EUA, 1999). O filme original gerou um culto visto muito raramente no mundo cinematográfico. Cinéfilos, em geral, sempre elegem cult movies e os colocam num pedestal, como um deus pagão – o bezerro de ouro do Velho Testamento. Mas o caso de “Matrix” ultrapassa em muito esse tipo de exemplo. Até as universidades, geralmente avessas a produtos oriundos da cultura de massa, se renderam ao fenômeno.
Nesses casos, acredito que a única maneira de refletir sobre o filme de um
ponto de vista novo (a proposta principal que justifica a existência deste site) é partindo da experiência subjetiva. Ou seja, é preciso rasgar o manto de objetividade total do jornalismo clássico e tentar passar ao leitor um pouco do sentimento, da noção particular, da sensação de ver um fenômeno cultural nascendo e, de certa forma, participar desse fenômeno ainda nas entranhas. Acho que essa é a chave para tentar ver “Matrix” de uma forma que não seja um mero estilhaço, ou comentário, do que tantos outros já disseram por aí.
Minha primeira sessão de “Matrix”, lembro bem, aconteceu no Multiplex Tacaruna, um complexo de oito salas que fica no Recife. Era uma sexta-feira, à meia-noite, em maio de 1999. O filme estava muito bem falado pela crítica especializada, mas não tinha muito apelo de público, e por isso a sala estava vazia. Foi uma sessão espetacular. Lembrando daquele dia, repasso imediatamente uma das lições mais básicas do roteirista Syd Field: um filme precisa fisgar o espectador nos primeiros 10 minutos. “Matrix” me fisgou antes disso, porque possui uma das seqüências de abertura mais intrigantes que eu havia visto em muito, muito tempo.
Primeiro, aparece uma mulher desconhecida falando no telefone, num apartamento abandonado. Ela veste couro negro, mexe num laptop, fala no celular com alguém e tem aparência de durona. Uma dúzia de policiais sobe no prédio para prendê-la. Em seguida, agentes que parecem do FBI chegam ao local e avisam ao chefe da operação que ele deveria ter esperado por eles. “Seus homens já devem estar todos mortos”, avisa o líder, o agente Smith (Hugo Weaving), em tom solene.
Dois minutos, e eu já estava fisgado. Que poderes aquela mulher poderia ter? Algo sobrenatural, talvez? A seqüência que responde a essa pergunta permanece como minha cena favorita dos três “Matrix”. Ao receber voz de prisão, Trinity (Carrie-Anne Moss) chuta quatro homens, anda pelas paredes e derruba outros três a tiros. Depois, para meu espanto, foge em desabalada carreira quando vê os homens de terno preto (ou seja, o espectador supõe que eles devem ter alguma habilidade ainda mais fantástica).
Trinity pulava de um prédio para outro, o cara a seguia. Naquele momento, eu e os demais espectadores éramos como os policiais comuns, que assistiam à cena boquiabertos. Como podia? Por um momento, achei que o filme iria explicar tudo da forma mais boba, do tipo “super-heróis de outro planeta”. Aí Trinity sumia pelo bocal de um telefone e os agentes pareciam achar isso normal. Estranho, muito estranho. Esperei por uma explicação. Quando ela vem, a projeção já passa de 60 minutos e o espectador só falta babar na cadeira.
Já nos primeiros minutos, portanto, qualquer sujeito com bom senso e um pouco de conhecimento cinematográfico sabe que “Matrix” é um filmaço. Os outros 126 minutos do primeiro longa apenas confirmam, com sobra, essa afirmação. O filme tem a ambição de criar uma nova mitologia, como “Star Wars” havia feito nos anos 1970, e acerta o alvo com uma precisão absurda.
A trama focaliza a transformação de um hacker, Neo (Keanu Reeves), em líder da resistência contra um mundo dominado por máquinas, que mantêm a espécie em estado de hibernação constante. Envolve uma colagem cultural de religião, filosofia e inteligência artificial, com fartas doses de cultura pop (quadrinhos, kung fu, música pesada) e um tantinho de marketing. Como fusão cultural, o filme parecia perfeito. A reação dos quinze ou vinte sujeitos que estavam na mesma sessão que eu foi idêntica. Todo mundo saiu do cinema meio atordoado, achando tudo espetacular.
Os acontecimentos dos quatro anos seguintes confirmaram que tínhamos testemunhado, in loco, o nascimento de um fenômeno cultural. Esse tipo de situação é extremamente raro, mas, tendo vivido a década de 1990 na casa dos 20 anos, pude assistir a três deles acontecendo: o Nirvana, “Pulp Fiction” e, finalmente, “Matrix”.
Essa sensação de estar vendo a história acontecer é embriagante e, sem dúvida, contamina inteiramente a visão que se tem do processo dali para adiante. Existe uma centelha de divino nesse tipo de experiência, algo sobrenatural, inexplicável, como se pudéssemos, ainda que por um milésimo de segundo, fazer
contato com o futuro. Por mais que eu tenha tentado evitar, jamais consegui deixar de vislumbrar o universo “Matrix” com esses olhos. O que explica, em parte, o misto de decepção e fascínio que os outros dois longas da trilogia foram recebidos, por mim e por milhões de pessoas.
Essa experiência de contato com o futuro me leva, é claro, ao bullet time (a técnica de efeitos especiais utilizada para congelar o tempo) e ao “Matrix” original. Há, no filme, quatro momentos em que aquele efeito é utilizado. Todos são espetaculares, embora o primeiro – o salto de Trinity no ar, enquanto a câmera rodopia em 180º – seja um desses momentos que ficarão na história do cinema, que aparecerão nas listas de momentos antológicos dos filmes de ficção científica, daqui a 200 ou 300 anos. Ali, meu queixo caiu, e a tecnologia do cinema avançou alguns anos em um segundo.
As aparições do bullet time, bem como as lutas de kung fu, são momentos de puro deleite juvenil. São cerejas no bolo de um filme que dosa com perfeição contagiante uma trama complexa, cenas de ação impressionantes e um enredo capaz de fornecer informações para mais três ou quatro filmes (algo que, como logo soubemos, estava mesmo planejado). O ritmo perfeito entre pancadaria e cérebro torna o filme um clássico contemporâneo da ficção científica.
Resumindo, o primeiro “Matrix” reflete a minha geração com perfeição. É um filme de ação empolgante, que trata o espectador como um ser capaz de raciocinar. Para os cinéfilos de carteirinha, há uma infinidade de referências (as folhas de jornal voando enquanto Neo e Smith se encaram, numa emulação perfeita dos velhos e deliciosos duelos dos faroestes spaghetti) e citações pop (animações japonesas como “
Akira”, séries de TV como “O Prisioneiro”, filmes adolescentes como “Karatê Kid”). Para os acadêmicos, as citações de Platão, Jean Baudrillard, Paul Virilio e outros teóricos continuam rendendo muita discussão. Já assisti ao filme pelo menos mais oito vezes e escrevi trabalhos acadêmicos sobre ele. Creio firmemente que vai virar um clássico e sobreviver ao tempo.

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