
Embora derrape no final melodramático, ficção científica compõe um estudo de personagem meticuloso e acima da média
Por: Rodrigo Carreiro
Quem diria que a terceira versão cinematográfica de um romance de Richard Matheson (“Além da Imaginação”) conseguiria tirar do terceiro capítulo da saga “O Senhor dos Anéis” o recorde de maior estréia da história do cinema no mês de dezembro? Pois “Eu Sou a Lenda” (I Am Legend, EUA, 2007) não apenas conseguiu o feito, mas o fez através de uma narrativa consistente, que descarta elementos de horror e ficção científica presentes na história original para realizar, pelo menos durante dois atos, um interessante estudo de personagem. Embora tenha um final insatisfatório e apresente problemas numa área em que grandes produções dificilmente erram (os efeitos especiais), “Eu Sou a Lenda” alcança um resultado bem superior à maioria dos filmes contemporâneos que almejam o puro e simples entretenimento.
Olhando em retrospecto, a produção conturbada do longa-metragem não dava sinais de que poderia se tornar um grande sucesso. Depois de duas passagens sem brilho pelas telas (em uma fita italiana de 1964 e numa obscura aventura de 1971, com Charlton Heston), a história vinha sendo cultivada pela Warner muitos anos antes de receber sinal verde. Por algum tempo, Ridley Scott esteve ligado à direção, com Arnold Schwarzenegger no papel de último homem vivo do planeta. Não deu certo. Depois, o projeto passou pelas mãos de Michael Bay. Também não aconteceu, mas foi nesta época que o roteiro chamou a atenção de Will Smith. A produção foi congelada por algum tempo depois do lançamento de “Extermínio” (2002), com cujo enredo tem semelhanças inegáveis, mas o interesse de Smith prevaleceu e o projeto finalmente saiu do papel. Foi o próprio ator quem contratou Francis Lawrence (“Constantine”) para dirigir.
Em geral, projetos cujo controle criativo passam de mão em mão não costumam resultar em filmes memoráveis. Além disso, os nomes envolvidos também não deixaram muitos cinéfilos salivando. O roteirista Akiva Goldsman, por exemplo, recebeu muitas críticas pelo texto excessivamente expositivo de “O Código Da Vinci”. O próprio trabalho anterior de Lawrence, a despeite de alguns bons momentos isolados, é bastante irregular. A persona projetada por Will Smith como ator – um sujeito tagarela com mais talento para a comédia do que para o drama – tampouco ajudava um filme que precisava ser introspectivo e intimista para funcionar. Apesar de tantos sinais desfavoráveis, a Warner não só levou em frente a produção, como liberou o enorme orçamento de US$ 180 milhões para a adaptação.
Por tudo isso, a surpresa positiva pelo bom resultado final de “Eu Sou a Lenda” é genuína. A grande sacada dos produtores e de Francis Lawrence foi transformar a jornada de Robert Neville (Smith), o único sobrevivente de um vírus letal que matou 5,6 bilhões de pessoas e transformou todas as demais em mutantes assassinos com fotofobia, em um meticuloso estudo de personagem. A excelente direção de arte ajuda bastante. Os designers de produção foram capazes de transformar alguns quarteirões da Quinta Avenida, em Nova York, numa terra de ninguém. A ação é situada três anos depois que o tal vírus varreu a população da Terra, e a metrópole mais cosmopolita do planeta virou um deserto cuja infra-estrutura está entrando em colapso. O mato invadiu ruas e prédios. Cervos disputam o espaço da cidade abandonada com leões. Bandos de pássaros selvagens cruzam os céus displicentemente.
Ser o último ser humano vivo na face da Terra é uma espécie de arquétipo poderoso do inconsciente humano – todos nós já imaginamos este cenário algum dia. O trabalho de Will Smith, como ator, é torná-lo convincente. Graças ao bom roteiro e à direção de arte cuidadosa, Smith faz um ótimo trabalho. Ele interpreta Robert Neville como um homem que se aferra desesperadamente a uma rígida rotina militar para não enlouquecer. Seu dia é controlado por um cronômetro. De manhã, Neville cuida do corpo – corre na esteira (sair para o cooper no Central Park não é mais uma opção), faz musculação, caça nas ruas com fuzis automáticos e carros esporte. Ao meio-dia em ponto, todos os dias, ele vai até o porto, esperando encontrar algum possível sobrevivente (uma mensagem ininterrupta transmitida via rádio pede que possíveis sobreviventes façam o mesmo). À tarde, trabalha num laboratório montado no porão de caça, em busca de uma cura para o vírus. À noite, ele cerra as portas e janelas de sua fortaleza com blocos de aço, enquanto os zumbis saem às ruas. Quando sol nasce, Neville está de pé. É hora de repetir as ações, minuto a minuto.
Sem pressa, Francis Lawrence usa 70% da duração do filme para estabelecer esta rígida rotina. Quase não há diálogos. Às vezes, por puro desespero, Neville conversa com sua única companheira – uma cadela da raça pastor alemão – ou com manequins que ele espalhou por lojas de conveniência e locadoras de DVD, de onde retira comida para sobreviver e filmes para entretenimento. Flashbacks esparsos explicam como o vírus letal surgiu (a origem foi uma pesquisa de alteração genética em células cancerígenas), e como se alastrou de maneira avassaladora. Neville não tem certeza se existem mais sobreviventes, imunes ao vírus como ele, em outras cidades. Ele não quer abandonar Nova York – a cidade, principal porta de entrada nos EUA, foi bem escolhida como cenário – porque o vírus surgiu ali. Neville acredita que, se alguém tem chance de encontrar uma cura para o problema, precisa estudar as condições onde o vírus se originou.
Quem assistiu a “Extermínio”, de Danny Boyle, vai perceber grandes semelhanças, e não apenas no enredo (Lawrence repete a estratégia de mostrar brevemente pontos turísticos universais, como a esquina da Times Square, com mato crescendo no concreto, imagem sempre impressionante). O design das criaturas mutantes em que os humanos se transformaram também é bem parecido. Há uma diferença: aqui, elas são bestas de força sobre-humana, que atacam em altíssima velocidade. Para traduzir isto em imagens, Francis Lawrence teve que usar CGI, e o resultado não ficou perfeito. Numa das cenas, Robert Neville é atacado por uma matilha de cães mutantes. Bastam algumas imagens para que a platéia note como os animais se movem de maneira estranha, artificial. Num filme de US$ 180 milhões, efeitos digitais mal feitos são um defeito muito sério.
Apesar disso, o maior problema se encontra no terceiro e último ato, que começa justamente quando Robert Neville descobre que não é a única pessoa viva. Aliás, a parceira dele em cena é a atriz brasileira Alice Braga, de “Cidade Baixa”. Ela está muito bem, compondo uma personagem forte, decidida e com inglês extremamente seguro. Francis Lawrence merece um elogio extra por ter tido a coragem de escalá-la, pois fazer de um personagem tão importante alguém de ascendência sul-americana (no filme, ela viaja de navio, de São Paulo a Nova York) dá ao filme um sabor universal muito bem-vindo. O problema é que, rumo ao clímax, o roteiro dá uma guinada rumo ao melodrama fácil, eliminando qualquer sutileza possível na resolução da trama e transformando a trajetória do herói numa seqüência de clichês previsíveis, implausíveis e exagerados. Uma pena.
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