
Filme de Lírio Ferreira celebra alegremente os ícones da turma que construiu o movimento mangue
Por: Rodrigo Carreiro
Por: Rodrigo Carreiro
Um dos traços mais marcantes do chamado movimento mangue beat, que ganhou popularidade na virada do século em Pernambuco, foi uma inversão na forma como os burgueses do Recife viam a si próprios. De repente, a vergonha que sentiam por viver num lugar inóspito, do ponto de vista cultural, deu lugar a um orgulho palpável por estar geograficamente próximos de um grupo de pessoas celebradas nacionalmente como renovadores de uma tradição cultural. Nesse sentido, “Árido Movie” (Brasil, 2006) é um legítimo representante da cultura mangue no cinema. O filme, vencedor do Cine PE em 2006, celebra alegremente os ícones do Pernambuco jovem dessa turma.
Em resumo, “Árido Movie” é um catálogo de imagens do que significa ser, em 2005, um pernambucano de classe média, numa faixa etária entre 20 e 40 anos, vivendo num padrão de classe média e com alguma sensibilidade artística, em uma cidade do Grande Recife: praia de Boa Viagem, bares como Casa de Banhos e Biruta, o jornalista Xico Sá, cerveja, maconha, falta d’água, calor, Marco Zero, o músico Lirinha, mais maconha, Vale do Catimbau, um serão nostálgico e afetivo, o cantor Ortinho, e mais maconha. Essa reunião de ícones traduz o ambiente em que vive a galera mangue, e o filme emula tudo isso muito bem. Ou seja, “Árido Movie” tem potencial de se tornar cult para um público que se reconhece amplamente na tela e tende a amar cada polegada do filme, o que não significa que o produto final seja realmente bom.
É certo que o problema da identidade cultural é central para os realizadores do mangue beat, em todas as suas vertentes artísticas (música, moda), mas Lírio Ferreira não foi especialmente feliz no tratamento que dá a essa questão. A impressão que o filme passa é de tentar abraçar o maior número possível de impressões sensoriais relacionadas ao orgulho de ser pernambucano, e o resultado final atira para todos os lados, resultando numa cacofonia que se mostra eficiente nas partes, mas estranhamente irregular no todo. “Árido Movie” cai na velha armadilha do excesso de ambição, ao tentar ser menos um filme e mais um tratado sobre o que significa ser pernambucano. O resultado pode até ser engraçado aqui e acolá, mas no todo vira um porre.
A trama em si é bastante interessante, aglutinando novos e velhos elementos característicos da cultura pernambucana. O protagonista é um expatriado. Jonas (Guilherme Weber) trabalha como homem do tempo numa grande emissora de TV. Quando o pai (Paulo César Pereio) que ele não vê desde criança morre, assassinado na fictícia cidade sertaneja de Rocha, ele é obrigado a voltar a Pernambuco para enterrar o parente, metendo-se inadvertidamente numa tentativa de vingança bem típica do Sertão, arquitetada por tios, primos e irmãos (Matheus Nachtergaele, Aramis Trindade, o cantor Ortinho) que fazem o tipo “brucutus sertanejos desconfortáveis com o menino mimado da cidade grande”.
A primeira metade do filme é bem amarrada, contando com uma abertura vigorosa que apresenta uma miríade de personagens durante uma festa num boteco de Rocha e vai, aos poucos, identificando-os e cruzando-os entre si. Jonas passa pelo Recife, vê a mãe (Renata Sorrah), encontra um trio de amigos de faculdade (Selton Mello, Mariana Lima e Gustavo Falcão) e segue viagem. Na estrada conhece Soledad, uma videomaker e artista plástica (Giulia Gam), também em viagem a Rocha, a fim de fazer um documentário sobre um velho místico no estilo Antônio Conselheiro (José Celso Martinez Correia) que vive isolado numa fazenda local. O destaque no elenco é José Dumont, à vontade no papel de um barman e mecânico que dirige um misto de boate/boteco/posto de gasolina no meio da terra seca.
Ferreira e os roteiristas Eduardo Nunes, Hilton Lacerda e Sérgio Oliveira têm problemas para conduzir a narrativa em ritmo fluido, o que resulta num produto cheio de sobressaltos. Há uma tentativa evidente de imprimir ao filme um tom de auto-descoberta, melancólico, porém intercalado com doses generosas de humor. Ocorre que a fusão não ficou bem feita, pois os dois elementos ficaram compartimentados demais, cada um concentrado numa narrativa distinta. A jornada de Jonas é mais séria e misteriosa; a trama paralela envolvendo seus três amigos é ensolarada e engraçada. Aliás, tão meticulosamente engraçada que soa forçada e artificial.
Na verdade, o trio de personagens poderia ser eliminado do filme sem nenhum prejuízo à ação dramática principal. Eles não acrescentam nada à jornada de Jonas. Mas têm, é claro, um papel importante no perseguido objetivo de “pernambucanidade” do filme, que é apresentar a faceta maconheira da região e da faixa etária do seu público-alvo. A viagem dos três ao sertão é, na verdade, uma visita ao zoológico humano do interior do estado, com o mal-disfarçado objetivo de abastecer o estoque de erva do grupo – uma viagem bem familiar a todo mundo que convive no ambiente boêmio do mangue beat.
Um dos problemas mais visíveis de “Árido Movie” é a vontade ardente de enfiar no roteiro a maior quantidade possível de coloquialidades típicas do “pernambuquês”, em um excesso que acentua o artificialismo da produção. A certo momento, um dos personagens exclama uma das anedotas mais batidas dos recifenses como se fosse uma frase original: “Maconha dá amnésia e outras coisas que eu não lembro”. Isso não acontece uma ou duas vezes; os diálogos são pontuados por esse tipo de expressão. A estratégia deve ter causado uma dificuldade extra aos roteiristas, que precisavam inserir nos diálogos esse tipo de pérola, o que acabou por empobrecer a narrativa, inclusive criando problemas no desenvolvimento dos personagens. O Jonas bem rascunhado na primeira metade do filme não parece a mesma pessoa que solta bobagens do tipo “eu me sinto um estrangeiro em todo lugar”, perto do final. Talvez o sol sertanejo tenha desmiolado a cuca do rapaz.
Outro ponto curioso e a fotografia de Murilo Salles, um profissional que não atuava na função há 20 anos. As composições cuidadosas (excelente a tomada aéres que emoldura os créditos, na abertura), os longos planos com a câmera em movimento (alguns soando como exibicionismo gratuito, como o plano circular entre as pedras do Cachorro e do Elefante) e enquadramentos caprichados dão a impressão de uma obra sofisticada, mas por outro lado o tratamento da luz pode ser, para alguns, problemático. As cenas interiores têm iluminação quase expressionista, cheia de sombras e pontos escuros, enquanto os espaços externos são mostrados em frios tons azulados, sem a luz ofuscante que caracteriza a região. É um sertão de sonho, irreal. O resultado é artificial.
No final, é inevitável uma comparação com “Cinema, Aspirinas e Urubus”, filme pernambucano da mesma safra que também teve orçamento minúsculo e lida com a mesma questão da identidade cultural, mas de uma maneira completamente diferente. O que o filme de Marcelo Gomes tem de delicado e intimista, o longa de Lírio Ferreira possui de vigoroso e esparrento. O primeiro consegue ser universal através do tratamento formal rigoroso e contido, possuindo um foco nítido no que realmente interessa. Já o segundo vai com tanta sede ao pote que passa da conta e termina encerrando seu interesse a um público regional.
Em resumo, “Árido Movie” é um catálogo de imagens do que significa ser, em 2005, um pernambucano de classe média, numa faixa etária entre 20 e 40 anos, vivendo num padrão de classe média e com alguma sensibilidade artística, em uma cidade do Grande Recife: praia de Boa Viagem, bares como Casa de Banhos e Biruta, o jornalista Xico Sá, cerveja, maconha, falta d’água, calor, Marco Zero, o músico Lirinha, mais maconha, Vale do Catimbau, um serão nostálgico e afetivo, o cantor Ortinho, e mais maconha. Essa reunião de ícones traduz o ambiente em que vive a galera mangue, e o filme emula tudo isso muito bem. Ou seja, “Árido Movie” tem potencial de se tornar cult para um público que se reconhece amplamente na tela e tende a amar cada polegada do filme, o que não significa que o produto final seja realmente bom.
É certo que o problema da identidade cultural é central para os realizadores do mangue beat, em todas as suas vertentes artísticas (música, moda), mas Lírio Ferreira não foi especialmente feliz no tratamento que dá a essa questão. A impressão que o filme passa é de tentar abraçar o maior número possível de impressões sensoriais relacionadas ao orgulho de ser pernambucano, e o resultado final atira para todos os lados, resultando numa cacofonia que se mostra eficiente nas partes, mas estranhamente irregular no todo. “Árido Movie” cai na velha armadilha do excesso de ambição, ao tentar ser menos um filme e mais um tratado sobre o que significa ser pernambucano. O resultado pode até ser engraçado aqui e acolá, mas no todo vira um porre.
A trama em si é bastante interessante, aglutinando novos e velhos elementos característicos da cultura pernambucana. O protagonista é um expatriado. Jonas (Guilherme Weber) trabalha como homem do tempo numa grande emissora de TV. Quando o pai (Paulo César Pereio) que ele não vê desde criança morre, assassinado na fictícia cidade sertaneja de Rocha, ele é obrigado a voltar a Pernambuco para enterrar o parente, metendo-se inadvertidamente numa tentativa de vingança bem típica do Sertão, arquitetada por tios, primos e irmãos (Matheus Nachtergaele, Aramis Trindade, o cantor Ortinho) que fazem o tipo “brucutus sertanejos desconfortáveis com o menino mimado da cidade grande”.
A primeira metade do filme é bem amarrada, contando com uma abertura vigorosa que apresenta uma miríade de personagens durante uma festa num boteco de Rocha e vai, aos poucos, identificando-os e cruzando-os entre si. Jonas passa pelo Recife, vê a mãe (Renata Sorrah), encontra um trio de amigos de faculdade (Selton Mello, Mariana Lima e Gustavo Falcão) e segue viagem. Na estrada conhece Soledad, uma videomaker e artista plástica (Giulia Gam), também em viagem a Rocha, a fim de fazer um documentário sobre um velho místico no estilo Antônio Conselheiro (José Celso Martinez Correia) que vive isolado numa fazenda local. O destaque no elenco é José Dumont, à vontade no papel de um barman e mecânico que dirige um misto de boate/boteco/posto de gasolina no meio da terra seca.
Ferreira e os roteiristas Eduardo Nunes, Hilton Lacerda e Sérgio Oliveira têm problemas para conduzir a narrativa em ritmo fluido, o que resulta num produto cheio de sobressaltos. Há uma tentativa evidente de imprimir ao filme um tom de auto-descoberta, melancólico, porém intercalado com doses generosas de humor. Ocorre que a fusão não ficou bem feita, pois os dois elementos ficaram compartimentados demais, cada um concentrado numa narrativa distinta. A jornada de Jonas é mais séria e misteriosa; a trama paralela envolvendo seus três amigos é ensolarada e engraçada. Aliás, tão meticulosamente engraçada que soa forçada e artificial.
Na verdade, o trio de personagens poderia ser eliminado do filme sem nenhum prejuízo à ação dramática principal. Eles não acrescentam nada à jornada de Jonas. Mas têm, é claro, um papel importante no perseguido objetivo de “pernambucanidade” do filme, que é apresentar a faceta maconheira da região e da faixa etária do seu público-alvo. A viagem dos três ao sertão é, na verdade, uma visita ao zoológico humano do interior do estado, com o mal-disfarçado objetivo de abastecer o estoque de erva do grupo – uma viagem bem familiar a todo mundo que convive no ambiente boêmio do mangue beat.
Um dos problemas mais visíveis de “Árido Movie” é a vontade ardente de enfiar no roteiro a maior quantidade possível de coloquialidades típicas do “pernambuquês”, em um excesso que acentua o artificialismo da produção. A certo momento, um dos personagens exclama uma das anedotas mais batidas dos recifenses como se fosse uma frase original: “Maconha dá amnésia e outras coisas que eu não lembro”. Isso não acontece uma ou duas vezes; os diálogos são pontuados por esse tipo de expressão. A estratégia deve ter causado uma dificuldade extra aos roteiristas, que precisavam inserir nos diálogos esse tipo de pérola, o que acabou por empobrecer a narrativa, inclusive criando problemas no desenvolvimento dos personagens. O Jonas bem rascunhado na primeira metade do filme não parece a mesma pessoa que solta bobagens do tipo “eu me sinto um estrangeiro em todo lugar”, perto do final. Talvez o sol sertanejo tenha desmiolado a cuca do rapaz.
Outro ponto curioso e a fotografia de Murilo Salles, um profissional que não atuava na função há 20 anos. As composições cuidadosas (excelente a tomada aéres que emoldura os créditos, na abertura), os longos planos com a câmera em movimento (alguns soando como exibicionismo gratuito, como o plano circular entre as pedras do Cachorro e do Elefante) e enquadramentos caprichados dão a impressão de uma obra sofisticada, mas por outro lado o tratamento da luz pode ser, para alguns, problemático. As cenas interiores têm iluminação quase expressionista, cheia de sombras e pontos escuros, enquanto os espaços externos são mostrados em frios tons azulados, sem a luz ofuscante que caracteriza a região. É um sertão de sonho, irreal. O resultado é artificial.
No final, é inevitável uma comparação com “Cinema, Aspirinas e Urubus”, filme pernambucano da mesma safra que também teve orçamento minúsculo e lida com a mesma questão da identidade cultural, mas de uma maneira completamente diferente. O que o filme de Marcelo Gomes tem de delicado e intimista, o longa de Lírio Ferreira possui de vigoroso e esparrento. O primeiro consegue ser universal através do tratamento formal rigoroso e contido, possuindo um foco nítido no que realmente interessa. Já o segundo vai com tanta sede ao pote que passa da conta e termina encerrando seu interesse a um público regional.
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