
Em uma das melhores cenas de “O Contador de Histórias”, o personagem principal conhece o mar pela primeira vez e corre em direção a ele com uma expressão de fascínio no rosto. A sequência assemelha-se bastante com a última cena do maior clássico do diretor francês François Truffaut, “Os Incompreendidos”, em que Antoine Doinel se depara com a beleza do oceano depois de fugir de um reformatório. A referência que o filme de Luiz Villaça faz não é de graça. Ambas as produções trazem um adolescente no papel principal, além de abordarem as poucas oportunidades que a sociedade possibilita para jovens infratores. O que muda é o tom dado a cada um dos filmes. Se o longa brasileiro tem seus melhores momentos quando aposta nas risadas e no universo lúdico, “Os Incompreendidos” é um drama dos mais intensos. Entretanto, a diferença no êxito de cada uma dessas películas é enorme. A comparação com o filme de Truffaut é o maior mérito que o “O Contador de Histórias” consegue alcançar. A trama se passa nos anos 70. Na periferia da capital de Minas Gerais, Roberto Carlos (Daniel Henrique), aos seis anos de idade, divide uma pequena casa com mais nove irmãos e a mãe. Ele é o mais novo. As dificuldades financeiras são evidentes, mas não há muitas saídas para esse problema. Iludida pelas propagandas na televisão, a mãe leva Roberto para ser interno na FEBEM, instituição oficial que prepararia crianças para serem “médicos, advogados e engenheiros”. A realidade, no entanto, é bem diferente. E ela fica ainda pior quando ele completa sete anos e precisa ser transferido para uma unidade que abriga garotos de até quatorze anos. As leis ficam ainda mais duras e incluem violência física e psicológica. Se antes Roberto conseguia se divertir e criar um mundo bastante particular com a ajuda de sua fértil imaginação, agora a falta de esperança o leva a um fatídico destino. Ele e alguns internos logo descobrem o caminho das ruas, das drogas e dos pequenos delitos. No total, são mais de 100 tentativas de fuga da instituição. A família acaba se afastando do jovem, e ele passa a carregar o estigma de “irrecuperável”. Até que aos treze anos, Roberto Carlos (Paulinho Mendes) conhece a pedagoga francesa Margherit Duvas (Maria de Medeiros), que está em visita a FEBEM. Ela pede para que o rapaz lhe conte uma história de sua vida. Ele hesita no começo, para depois revelar um causo hilário. A partir de então, tem início uma amizade fundamental para a mudança nos rumos do jovem. A pedagoga passa a abrigar-lhe em sua casa, mas em troca Margherit, que está desenvolvendo uma pesquisa, quer que Roberto conte mais histórias e tudo de uma forma que só ele sabe fazer. O começo de “O Contador de Histórias” acerta em cheio todas as suas intenções. Mesmo vindo de uma família pobre, Roberto sonha muito mais do que qualquer outro garoto de classes sociais mais favorecidas, e o filme capta esse universo fantástico de forma bastante eficiente. É interessante como o garoto consegue colocar sua imaginação para funcionar até em situações adversas. A cena de sua entrada na FEBEM, acompanhado de sua mãe, em que cria um mundo mágico com trapezistas e palhaços, é fascinante, porque ela consegue nos emocionar e fazer rir ao mesmo tempo. O tom de fábula toma boa parte do longa-metragem, com a contribuição da trilha sonora de André Abujamra e Márcio Nigro e da fotografia de Lauro Escorel. As composições são bem ao estilo das de Danny Elfman nos filmes de Tim Burton, enquanto que a tonalidade amarelada da fotografia nessas sequências capta bem o propósito do filme. O diretor Luiz Villaça (“Cristina Quer Casar”), com uma excelente equipe técnica nas mãos, procura atrair o público na primeira metade da película explorando bastante esse mundo lúdico criado pela mente de Roberto. Como esquecer da cena em que o menino chama a professora de educação física de hipopótamo e segundos depois a vemos se transformar no animal? Villaça atinge um nível de direção impressionante nesses momentos, sempre aplicando panorâmicas, aceleração e desaceleração de imagens ou até mesmo utilizando animações para relatar uma parte mais obscura das lembranças de Roberto. Uma cena em especial revela toda essa competência do cineasta. Nela, Roberto nos apresenta a favela onde mora, dando destaque para os personagens marcantes do local, como a mulher das maiores pernas do mundo e o evangélico “extremista” que prega na porta de sua própria casa. Mesmo se tratando de uma zona cercada de pobreza e sujeira, o cineasta consegue idealizá-la através apenas de um ângulo de câmera diferente. A favela nunca pareceu tão bela no cinema brasileiro. Entretanto, quando Roberto cresce e pára de imaginar, o filme cai bruscamente de rendimento. O problema é que “O Contador de Histórias” acaba caindo no lugar comum ao deixar de lado a comédia. A partir da hora final do longa, passamos a acompanhar os sofrimentos e as revoltas do garoto que, dentre outras coisas, passa a ser atormentado por um antigo “ídolo” das ruas. É normal que o menino perca a incrível imaginação que possuía com o tempo, mas Roberto faz isso de uma hora para outra. O roteiro de Villaça, José Roberto Torero, Mariana Veríssimo e Maurício Arruda é o grande responsável por essa mudança no filme e os consequentes erros que ela acaba trazendo. Apesar de ser baseado em fatos reais, a impressão é de que passamos a assistir a uma ficção criada por mãos apaixonadas por melodramas. O desfecho do filme é o auge desse conceito. Chega a ser lamentável observar como uma história que começou incrível acaba se engalfinhando em maus lençóis. Entretanto, o argumento também possui seus méritos. A relação de Roberto Carlos com a pedagoga é muito bem desenvolvida. A amizade entre os dois vai crescendo aos poucos e esta união é a principal “culpada” por conhecermos os causos fascinantes do garoto. Além disso, o roteiro possui elementos cômicos que funcionam consideravelmente. As histórias que o menino cria para ter tratamento diferenciado na Febem e a maneira como aprende vários palavrões com os amigos são apenas algumas dessas divertidas cenas. O humor na película ainda deve vários de seus êxitos ao seu elenco infantil, com destaque para o menor dos Robertos, Daniel Henrique. O ator mirim é daqueles raros achados que, mesmo sem ter um estudo aprofundado de artes cênicas, trabalham melhor do que muito profissional experiente no ramo. Ele é de uma naturalidade impressionante. O Roberto de treze anos, Paulinho Mendes, também possui um desempenho competente, apesar de não ter a mesma eficiência nas cenas dramáticas. Apenas Cleiton dos Santos da Silva, que interpreta o personagem aos vinte anos, é um desastre. Já a atriz portuguesa Maria de Medeiros (Pulp Fiction) dá a pedagoga francesa Margherit a doçura necessária para que acreditemos que ela resgatará Roberto do mundo da pobreza. Ela é apenas um pouco prejudicada pelo roteiro, que a transforma em um personagem desinteressante em alguns momentos. Se o começo de “O Contador de Histórias” nos empolga, o desfecho é de uma enorme decepção. O verdadeiro Roberto Carlos Ramos, que surge apenas em offs desnecessários e durante os créditos finais, deve ter ficado apenas meio feliz com o resultado completo do filme. Se a temática permite comparações com “Os Incompreendidos”, de Truffaut, a realização não chega nem perto da eficiência dessa obra-prima francesa. Vale apenas por algumas hilárias e fascinantes histórias do garoto.
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