quarta-feira, 21 de abril de 2010

Utopia e Barbarie

Silvio Tendler tentou fazer um filme por quase 20 anos. E no final admitiu, no texto do próprio filme, que “Utopia e Barbárie” é um trabalho não “inacabado, mas sim inacabável”. Um trabalho onde não cabe o ponto final, mas sim reticências. E nem poderia ser diferente. Afinal, “Utopia e Barbárie” é um documentário de fôlego - muito fôlego - que se propõe a montar um painel histórico-didático-sócio-político-cultural das utopias e das barbáries que o mundo conheceu desde o final da Segunda Guerra até os dias de hoje.
A boa notícia é que Tendler não apenas se propôs a montar o tal painel, como também conseguiu. E bem! “Utopia e Barbárie” é uma verdadeira aula que deveria entrar para o currículo de toda escola.
Quem viu “Os Anos JK” e “Jango”, do mesmo diretor, sabe que Tendler opta pela clareza da narrativa dos fatos que se propõe a aprofundar. Sem medo de ser feliz, nem de usar texto em off. Fãs de documentários mais experimentais talvez possam até achar “Utopia e Barbárie” esteticamente conservador. Ou televisivo, palavrinha que muitos confundem com palavrão. Mas é inegável o talento do filme em costurar com ritmo, nitidez e poder de concisão as dezenas de fatos utópicos e bárbaros que rasgaram a face do Planeta nos últimos 60 e poucos anos.
“Utopia e Barbárie” percorreu 15 países: França, Itália, Espanha, Canadá, EUA, Cuba, Vietnã, Israel, Palestina, Argentina, Chile, México, Uruguai, Venezuela e, claro, Brasil. Em cada um desses lugares, Tendler documentou os protagonistas e testemunhas da História. Incluindo intelectuais, filósofos, teatrólogos, cineastas, escritores, jornalistas, militantes, historiadores, e economistas, além de testemunhas e vítimas desses mesmos episódios históricos. Com inacreditável serenidade, uma sobrevivente de Hiroshima narra, por exemplo, como as imagens que ela viu se assemelham a cenas que ela considera ter vindo diretamente do Inferno. Pura barbárie. Com poesia, o escritor Eduardo Galeano fala que o direito de sonhar é “o papai e a mamãe” de todos os outros direitos, pois é ele quem alimenta os demais. Pura utopia. Ao ser questionado sobre vários cadáveres enterrados numa mesma gaveta de túmulo, Pinochet sorri e diz: “Que baita economia, hein?!”. Mais barbárie impossível. É sobre esta terrível dicotomia que o documentário se desenrola.
O texto e o pensamento de Tendler, no filme, são interpretados pelos atores Letícia Spiller e Chico Diaz e pelo dramaturgo Amir Haddad. O próprio Tendler - hoje com 60 anos - também toma a saudável liberdade de se incluir na trama. Na pesquisa, ele é simultaneamente agente e objeto.
O resultado é um filme de coração aberto, que consegue o distanciamento histórico necessário para a análise dos fatos, ao mesmo tempo em que não abre mão de uma postura afetiva assinada tanto pelo autor como pelos seus entrevistados. Ou seja, um filme utópico e bárbaro, sim... pero sin perder la ternura, jamás.

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